domingo, 23 de janeiro de 2011

Minha conversa com John Fante

Minha conversa com Fante


Neste ano desci duas vezes ao inferno. Descer talvez não seja a melhor palavra, porque o inferno não está abaixo da superfície, no porão do mundo, o inferno é apenas um certo ritmo da vida, uma desorientação fundamental que procuramos esconder sob o véu da realidade. Deixar o inferno subir até você tem um teor libertário, você não é uma presa fácil da realidade e seus artifícios. Por outro lado, o inferno é irrespirável: pensei numa imagem assim, uma sede de quem comeu girassol em pó e pra quem a água se tornou tão imaterial quanto o ar. Quem conhece o inferno precisa de três coisas (todos precisam, mas quem conhece o inferno precisa com mais intensidade): amor, amizade e arte. E aí entram os shows da Banda RioClaro neste ano. Um, em especial, num domingo seguinte ao dia em que eu pensei que queria dormir por uns 10 meses. Estar acordado pra certos encontros da vida é um primeiro passo: o encontro entre uma certa tonalidade do céu de vermelho a azul contra o lago quase dourado e a música que anima duas meninas, duas pequenas dançarinas sobre a grama intensamente verde. Depois de estar acordado, despertar. Iluminar-se. Respirar. Enfim, por isso resolvi escrever, como agradecimento, essa conversa imaginária com John Fante, seguindo uma dica do Ray (um puro devaneio, sem pretensão, não finjo dar conta de um nome consagrado, um livro que esmaga aqueles que tentam copiar o seu estilo, enquanto escrevo isso em meu computador empoeirado).

Eu: Tenho alguns textos, umas coisas meio parecidas com livros, vou soltando meio aleatoriamente porque não tenho essa convicção que vejo em você sobre duas coisas: o meu talento literário e o sentido de ser alguma coisa na vida como um escritor. A minha dúvida é: existe algum lugar adequado para os livros?
Fante: O deserto.
Eu: As cascas de laranja jogadas no chão, as velhas solitárias, os casais brigando, as crianças que nascem a contragosto, os taxistas; isso tudo não é estética, certo?
Fante: São sinais, indícios de alguma coisa parecida com salvação.
Eu: As coisas estão cheias de anjos, ouvi dizer.
Fante: Eu preferia bons charutos, uma noite com aquela mulher de pele cor de raposa, eu preferia ser o autor.
Eu: Isso você conseguiu, ser autor. Tem até seus porta-vozes oficiais e imitadores.
Fante: É uma ironia da história.
Eu: Uma mentira, e não um desejo. O sujeito começa a se levar a sério.
Fante: Do mesmo jeito, o dinheiro é bom porque liberta, mas dinheiro deve ser amado apenas platonicamente.
Eu: Também li isso em algum lugar. Também ando em torno dessa questão do amor, do amor que só faz sentido pra quem é solitário, os momentos de brilho intenso, sempre passageiros, uma recordação depois da outra, até um ponto em que tudo mal se inicia e já é despedida. A memória cansa mais do que a esperança.
Fante: De vez em quando, interrompo as divagações inventando uma perspectiva diferente, por exemplo: um rato observando um escritor debruçado sobre a poeira, sonhando com sua maravilhosa namorada mexicana. Isso dá mais densidade pra realidade, mas também indica que o tempo não é só esse em que estamos presos, esse apocalipse sem fim.
Eu: Aquela princesa que não vai se importar com o fato de você não ser um vencedor, aquela que foi menosprezada como nós. Palmeira, palmeira, palmeira, palmeira. Dois dias seguidos?
Fante: Acreditar em palavras é a pior forma de loucura.
Eu: Alberto Caeiro, Zaratustra (que é melhor do que Jesus), Bandini, muitos dos melhores sujeitos dos últimos tempos são fictícios.
Fante: A realidade asfixia. Mas a ficção não é mentira, não é o oposto do real porque é desejo.
Eu: Nesse sentido é que eu queria entender de anjo. Um anjo me trazendo uma boa garrafa de vinho. Pra te dizer a verdade, não me interesso pela literatura. Acho isso meio bobagem. Não quero um livro que não seja um bilhete premiado pra reinventar o desejo por uma boa namorada e um bom vinho.
Fante: Devaneios. Deus devia ter lido Nietzsche antes de criar o mundo.
Eu: Quando o Bandini diz que poderia ser qualquer coisa, um milionário, um jogador de beisebol, um escritor, eu, diferente de muita gente, acho que é a sério. Ele poderia ser qualquer coisa mesmo, e por extensão, você. Mas você não é Bandini, do mesmo jeito que ele não é o jogador de beisebol. Ele e você e eu somos o que poderia ser qualquer coisa dessas, pessoas comuns. Essa é toda diferença, que acho que alguns confundem quando pensam que fazendo de conta que são Bandini (por exemplo, reclamando da falta de grana) vão virar John Fante. Eles se esquecem, acho, que tudo é possível, incluindo Zaratustra e Caeiro, por conta desse poder ser mesmo, são prisioneiros do ser. Uma coisa é um cara que aspira a ser milionário, outra é o que é milionário, que se confunde com esse papel, a mesma merda rola com o sujeito que se convence que é escritor.
Fante: Eles não reconheceriam um gigante nem que um moinho de vento estivesse indo pra cima deles com tudo.
Eu: Falando em Dom Quixote, a falta de grana transforma o dinheiro numa coisa metafísica?
Fante: É estranho você dizer isso, parece papo acadêmico, porque é uma metafísica que dói no estômago.
Eu: É como se escrever fosse uma coisa suja, uma dedicação a uma atividade até ofensiva, como, por exemplo, procurar beleza e encantamento numa cidade por mais sórdida que ela seja, e você precisasse de um álibi razoável do tipo: escrevo, mas com uma finalidade, ganhar dinheiro.
Fante: Pode ser, mas a falta de grana é real, no meu caso. A vida é a continuação da literatura por outros meios.
Eu: É que a poesia separada do resto é uma coisa sórdida.
Fante: Que resto?
Eu: A vida.
Fante: Por isso eu odeio cadernos culturais.
Eu: Você imaginava que ia ser usado como pretexto pra um tipo exibicionista de literatura confessional?
Fante: Seja como for, eu não tenho nada a ver com isso. Eu não disse que prefiro Zaratustra a Jesus ensangüentado na cruz?
Eu: E a culpa que corre no seu sangue? Eu, por exemplo, depois de um ano de merda, estou começando uma nova história, um novo amor. Às vezes me flagro pensando que essa história toda vai dar merda, vai dar merda, vai dar merda. Mas não sei se faço isso só pra não perder o orgulho quando der merda, eu dizendo: pelo menos eu sabia que ia dar merda.
Fante: Você não viu pra quem eu dediquei meu livro? To falando de mim, não do Bandini. Tem gente que confunde experiência com experimentação. Experimentação é coisa de sociólogo, gente sem imaginação ou sentimento. Experiência é outra coisa. A vida pode dar um romance, mas a vida não é arrumadinha como um romance. Ou você vive o seu tempo, a sua condição e mergulha nisso, ou vai fazer outra coisa. Caso contrário, todos os roteiros estão traçados pelo conjunto de lixo que você leu e ouviu. Inclusive o meu livro pode virar lixo numa situação dessas.
Eu: Camisa pólo, sapatos brancos e óculos escuros, não é por aí? Nunca fui a Los Angeles e o que me impressiona é a variedade e o número de formas de destruição da cidade. Terremotos, maremotos, animais selvagens perdidos devido à expansão das avenidas, especulação imobiliária, um ar meio apocalíptico que torna a beleza mais urgente, a vida sempre está logo ali, a um passo, mas nunca é real porque sempre está à beira da morte.
Fante: Você não devia se gabar disso, você é de Brasília. Você deve entender alguma coisa de deserto. Poeira também não falta, cada palmo de terreno conquistado à moda turbulenta do velho oeste, tempestades de areia cobrindo a cidade inteira, o céu vermelho, azul de sanguessugas, branco, translúcido e você ali sozinho, debaixo dessa luz que nunca está parada, afundando nos monumentos paranóicos, você também ali sonhando com a sua princesa maia ou pelo menos acreditando que um dia vai encontrar a palavra certa, o percurso que vai fazer da poeira e do brilho uma coisa só, ao mesmo tempo bela e decadente. Que vai dar um pouco de alegria para os solitários e perdidos.

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