Num dia de luz inclinada, meio amarela, um calor suave de um sol quase ausente.
Paro pra abastecer o carro e a frentista me pergunta se fui eu o sujeito que apareceu hoje no jornal.
Não sei que sujeito é esse. Ela me explica: um músico qualquer.
É a segunda vez que me confundem com isso. Em João Pessoa um garçom me perguntou se eu era um
cantor de rock. Sei lá, queria ser, se bem que não, músico talvez, cantor de rock não, não do jeito que o garçom falou.
Hoje é sair com minha mãe e meu irmão e durante o almoço minha mãe calada. Algumas vezes perguntamos
se ela está bem. Ela é sempre assim, olhando pra baixo, olhando pra qualquer coisa. Eu falo com meu irmão que
queria comprar pra ele o livro Os vagabundos iluminados, que é sobre a procura da Iluminação em viagens de trem e
longas viagens solitárias em montanhas. Digo ao meu irmão que isso apenas é possível nos Estados Unidos onde, ao menos segundo o mito,
e mito não é o mesmo que mentira, um andarilho sempre encontrará alguém que o ajude.
Digo ao meu irmão que no Brasil um vagabundo
iluminado se tornaria, inevitavelmente, um mendigo isolado, olhando pros lados e pra baixo como quem foge. Aqui só
tem espaço pra turmas e pra alegria desesperada.Meu irmão discorda, sobre
a questão de virar mendigo, ele me diz que Deus sempre vai arrumar alguém, um anjo qualquer, pra te ajudar no caminho
(minha mãe, ainda calada).
Paramos numa farmácia. Eu e meu irmão ficamos no carro, ele me pergunta se já estou melhor, depois da separação,
se já esqueci, respondo que tem horas em que esqueço e horas em que me lembro, penso, não falo com ele, se isso quer
dizer que esqueci ou não. Eu ia dizer pra ele que o mais difícil não é me separar dela é me separar das coisas que ouvi, mas
minha mãe volta ao carro e não falo sobre o assunto, ela não vai querer ouvir, porque o que ouvi é uma acusação contra várias
gerações, aquele lance grego de miasma de sangue familiar que não presta.
O que falo com meu irmão é que estou com muita preguiça de parecer interessante e as mulheres em geral ficam esperando isso,
não que você seja interessante, não sou interessante, mas que você mostre que está se esforçando em parecer interessante.
Depois disso, sigo sozinho, mas não posso voltar pra casa.
Dou um volta um pouco maior de carro por Brasília,
escolho um caminho que me permita ver o lago.
No caminho ouço aquela música do Bob Dylan, most of the time she ain’t even in my mind, I wouldn’t know her if I saw her she’s
that far behind.
Most of the time.
Não disse pro meu irmão, mas pensei em como eu gostaria que o poema fosse um tipo de oração,
comprei um livro sobre sufismo e imaginação criativa. E no sufismo a poesia é uma oração e só há oração com poesia,
mas poesia cheia de prosaísmo, o prosaísmo da vida, os problemas singulares comuns, que é como penso em deus. Não
alguém que faz planos pra gente, mas como o puro prosaísmo da vida: uma luz meio amarelada, um sol quase ausente em seu
calor frio, o som ligado, um pouco de vagabundagem. Não uma coisa inteira, plena, mas aquilo que foi quebrado, os estilhaços,
as rachaduras no muro (caso contrário, não veríamos a luz) e isso no momento em que toca aquela outra música
Everything is broken.
E tem dias em que a poesia bate na sua cara, é difícil de explicar, tem dias em que um prosaísmo mais intenso quase vira
poesia e você se pega pensando em como gostaria de ser um poeta melhor pra dizer as coisas necessárias.
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