sábado, 15 de maio de 2010

"Não vim. Brasília é que veio"


Quando perguntam a Viriato de Castro, 73 anos, de onde veio, ele responde: “Não vim. Brasília é que veio”. O velho goiano de chapéu de feltro, veias em alto-relevo e pele tostada da peleja na lavoura está aqui há mais de 200 anos. Não ele propriamente dito, claro. Mas a sua origem, os seus descendentes, os mineiros que vieram para o sertão goiano atrás de terra primitiva, como eles chamavam as sucessivas e infindáveis chapadas devolutas onde mais tarde surgiria a nova capital.Todo o rosto de Viriato é um sorriso quando ele é convocado a dizer se gosta de Brasília: “Tenho até que conhecer o mundo pra ver se tem uma igual, tão linda que é. Como é que alguém teve a ideia de fazer tudo isso? Aquelas tesourinhas, a largura das ruas, aquela Praça dos Três Poderes, aquilo ali é um trem muito valioso. Bonito demais”.Brasília é uma miragem na memória de Viriato de Castro. Raramente, ele desce a serra até o Plano Piloto. Salvo algumas interrupções, passou a vida na fazenda ao lado da Lagoa Mestre d’Armas, vendo a Terra girar em torno do Sol e Brasília crescer ao redor da casa de adobe com uma cruz de madeira no frontispício. É uma construção que tem mais de 120 anos, pelos cálculos de Viriato. Há feridas no reboco, os caibros do telhado estão perigosamente corroídos, as telhas originais se encontram escurecidas, as janelas são de alumínio — mas as portas de madeira, compridas e largas, continuam soberbas — e o assoalho de tábua sem remendos nem deformações segue plácido e potente.

Velha casa
Quando Brasília estava chegando, Viriato preparava a mudança para a casa de duas janelas e porta-balcão. Em 1959, ele se casou com a mineira Maria Clementina, filha dos mais antigos moradores de Brazlândia. O casal se mudou para a casa, que já era quase centenária, e, para tanto, trocou o madeiramento do telhado. Foi a última grande reforma feita numa das mais antigas construções que ainda estão de pé no Distrito Federal.

A mudança para a casa velha, rodeada de monjolos, aconteceu dois anos depois de Planaltina começar a receber agitados visitantes. Eram os primeiros candangos que iam à cidade em busca de alimentos, ferramentas, remédios, utensílios domésticos. “A gente ouvia falar (na mudança da capital), mas não acreditava. O avô de Viriato, também Viriato de Castro, havia sido guia da Missão Cruls, no fim do século 19. O pai, Velusiano, ajudou a erguer a pedra fundamental de Brasília, em Planaltina, em 1922.A tradição de participar da mudança da capital continuou em Viriato neto. Ele ajudou a construir o primeiro galpão da Novacap. “A madeira foi toda carregada nas costas. Era pau de pindaíba (retirado) lá daqueles brejos. Trabalhei em Brasília quando não tinha uma alvenaria assentada. Arrancava capim do brejo pra fazer colchão.” Depois, Viriato percebeu que havia modo mais inteligente de ganhar dinheiro: plantando o de comer. Descobriu que os cariocas gostavam de feijão-preto — variedade pouco conhecida entre os goianos. “Ganhei muito dinheiro com feijão-preto. A primeira coisa que comprei pra mim foi (com o lucro) do feijão-preto. Comprei meu primeiro carro de boi, com 12 bois”.

Enquanto Viriato desfilava com seu carro de boi pelas trilhas de Planaltina, tratores de esteira abriam o Eixão. “Aquelas máquinas enormes derrubando aquelas sucupiraiadas, aquele pauzeiro... A gente parava e admirava. Uma máquina arrancar um pau desses?!” Antes da chegada dos homens e das máquinas, a área onde o Plano Piloto foi feito era conhecida apenas por servir de passagem para quem ia pescar na cachoeira do Rio Paranoá. “Naquele tempo, a gente não sabia o nome piracema. A gente dizia que era o tempo de o peixe subir. O peixe subia e caía do lado, na terra. A gente fazia uma cerquinha e deixava. No dia seguinte, aquilo estava cheio de peixe.”
O TEMPO PAROUO carro de boi continua na porta da casa centenária, o fogão a lenha segue cantando música crepitante, o chão do puxadinho da cozinha é de cimento vermelho, o gado come palha de milho e os gatinhos recém-nascidos estão enroscados no tapete de retalho. É de se perguntar, afinal, que mudanças Brasília trouxe para a vida de Viriato. “Muitas. Mudou tudo. De primeiro a gente morria de apendicite, de doencinha à toa. Mulher morria de parto. Meu tio ficou no sol, com três cobertores, tremendo de bater queixo, era maleita. Só de Goiânia ser a capital de Goiás (antes era Goiás Velho), já foi um lucro doido pra nós. Veio estrada, veio patrola.”

Só uma coisa não mudou para melhor. “O único trem que a gente perdeu de bom e não vai ter nunca mais é a amizade, a confiança. A gente tinha confiança em todo mundo. Ninguém precisava escrever nada. Você podia vender uma boiada. ‘Tal dia eu te pago’, tal dia vinha e pagava. Hoje acabaram os homens de confiança. De primeiro os homens eram mais homens do que hoje.”O velho Viriato continua o mesmo: acorda na escuridão e dorme quando o corpo acusa o cansaço. Cuida da plantação, do gado, da rapadura, dos dois tratores. Uma vez por mês, vai a Planaltina receber a aposentadoria e de vez em quando ao cardiologista. Toma oito comprimidos por dia e conta histórias de antes de Brasília para os visitantes. Sempre há alguém querendo conhecer a memória ancestral da cidade moderna. Viriato de Castro e Maria Clementina tiveram sete filhos, três dos quais já morreram. Têm 13 netos, dois bisnetos e, fechado com rolha de bálsamo, um garrafão de 20 litros de pinga, acondicionada há 18 anos. Há dois outros, enterrados ele não sabe mais onde, há mais de meio século. E histórias, como a do alemão que vivia escondido em grutas e do ouro do Urbano, um tesouro que certo bandeirante escondeu em algum ponto do agora Distrito Federal e que ninguém nunca encontrou. Viriato de Castro é um bem precioso. A gente passa por ele e fica mais rica.

Conceição Freitas

Correio Braziliense
Publicação: 15/05/2010





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